Quando ouvi, li e assisti sobre Piracanga – uma ecovila com centro holístico no Sul da Bahia – pela primeira vez, lá em 2014, não imaginava que seria a comida que me levaria até lá.
Depois de muitas tentativas de idas atraída por outros tipos de vivência, como os retiros de leitura de aura e práticas de permacultura, me dei de presente um curso de Cozinha Consciente. Eu só queria estar em Piracanga, e um pouco de estudo foi a desculpa perfeita. E foi lá que passei os dias que antecederam meu aniversário, em fevereiro.
A culinária não é a minha área de trabalho, não é o meu grande talento. Tampouco já almejei como plano B.
Mas acredito profundamente que alimentar-se de maneira sustentável é uma das mais lindas formas de honrar a abundância com o qual a mãe terra nos presenteia. E honrá-la é comer comida de verdade, feita com a mãos.
Jardim comestível (Foto: arquivo pessoal/a Naturalíssima)
Lá, cozinha-se e come-se com intenção e sem julgamento. Eis o segredo.
Com orientação do Thales Leocádio, guardião do jantar da Cozinha Alquimia, e ao lado de pessoas na mesma sintonia, aprendi mais do que harmonizar ingredientes e truques culinários. Mesmo tendo estudado e vivenciado a rotina de restaurantes de São Paulo e da Europa, Thales, o chef baiano de 28 anos e 11 de cozinha, mantém uma simplicidade genuína possível em só quem ama o que faz – e faz com propósito.
Apesar de não ser, na prática, íntima das panelas, sempre tive uma alimentação saudável e com comida de verdade. Cresci ouvindo falar da função de cada erva (foram muitos chás de boldo para as dores de barriga e de hortelã para a gripe). Aprendi em casa também que cozinhar com energia negativa desanda qualquer receita. Desde que me mudei para São Paulo, passei a descobrir que, com dedicação, posso fazer tudo o que quiser – inclusive na cozinha – um lugar em que eu nunca fiquei muito à vontade. Entrei no universo orgânico, depois vegano. Na mesma época, o jornalismo me trouxe a oportunidade de ficar perto de profissionais de nutrição ao fazer reportagens com as maiores novidades da área. Não à toa, cheguei em Piracanga me sentindo cheia de referências sobre alimentação. Em pouco tempo, porém, descobri que elas não eram nada perto do que eu praticaria naquele lugar onde tudo tem propósito espiritual. E viver esse conceito na prática evoluiu mais que a minha relação com a comida. Aprendi e re-aprendi lições essenciais para tratar o alimento como fonte de energia e cura!
1) Menos medidas, mais intuição A primeira orientação foi para minha turma anotar tudo, porque nenhuma receita seria passada. Tudo é feito “a olho”. Primeiro porque a quantidade é muito grande – cozinha-se para 150, 200 pessoas… -, depois, porque, segundo o Thales, seguir medidas é limitar-se. Estando harmonizados com as características de cada alimento e prato podemos comprender que caminho conduzir. Amassando o pão com as mãos, atentos, sabemos que, vez ou outra, precisaremos aumentar a farinha ou adicionar um pouco mais de líquido, por exemplo. (Re)conhecendo nosso verdadeiro paladar, compreendemos quando é preciso carregar nos temperos – pelo resultado final ou para agradar um capricho emocional. Intuição, presença e informação formam um um trio alquímico e tanto!
Na cozinha consciente, intuição e confiança são essenciais – Thales Leocádio, chef e guardião do jantar da Cozinha Alquimia
2) Intenção A intenção nasce desde quando plantamos uma semente até colhermos seu fruto. Ou mesmo adquirimos um ingrediente na feira. Ao cortarmos, refogarmos e até temperarmos. “É importante intencionar coisas boas, como cura e calma. Pensar no alimento como uma forma de nutrirmos espiritualmente e fisicamente”, explicou o professor.
A intenção é um recurso e tanto no momento de ingerir aqueles alimentos que chamamos de “pesados”. Pode ser um doce, uma fritura… “Nem sempre resistimos a todos as comidas, seja pelo sabor ou por uma questão social. Se comemos algo pensando positivo, sem julgar que determinado alimento nos fará mal…ele não fará”, garante Tales. Durante a vivência, meu grupo foi iniciado no Reike (de origem oriental, é a milenar forma de cura por meio da imposição das mãos), para termos como canalizar o melhor da energia para a comida. Depois disso, nunca o termo “a cura pelo alimento” fez tanto sentido para mim.
3) E se não tem orgânicos? Nem tudo é orgânico na ecovila. E isso, segundo Thales, não é um problema. O fato de o cultivo não ter sido orgânico não é totalmente ruim. É importante saber a origem do que ingerimos, sim. Mas não renegar ou tratar negativamente aqueles que não são.
“Por isso a intenção que colocarmos na receita antes de começar a fazê-la é importante. Podemos pensar que ao ser plantada, aquela fruta recebeu carinho e amor de um agricultor; que ela é fruto de um trabalho honesto. Ao eleger um alimento para comer/cozinhar, precisamos respeitá-lo desde o momento que ele foi plantado até chegar as nossas mãos. É uma maneira de colocar energia positiva e honrar a mãe terra. E, neste caso, saber de onde vem o alimento – seja uma verdura ou um prato já pronto – também é bem importante. Durante essa conversa, lembrei das muitas vezes em que cometi “terrorismo nutricional” comigo e com as pessoas a minha volta.
4) Cozinha amorosa “Cozinha é fogo emocional. É um lugar onde circula muita energia”, afirma Thales. Isso explica porque ele não é favor de “cardápio do dia” ou “da semana”. A equipe chega e o chef pergunta o que estão com vontade de fazer/comer. “Quando cozinhamos o que estamos com vontade de fazer ou comer, nada dá errado e tudo fica gostoso.”
Café da manhã: bolo de chocolate, mingau de aveia e banana cozinha – tudo vegano, simples e incrível (Foto: aNaturalíssima)
5) Versatilidade Reaproveitar os alimentos com técnicas gastronômicas é quase um milagre. Durante a minha vivência, o feijão do dia anterior foi usado como ingrediente principal para um hambúrguer vegano. O mesmo aconteceu com legumes. Pena que este hábito é algo cultura e ele ainda é visto com pré-conceito na maioria das culturas.
Tal versatilidade é fruto de muita intimidade e respeito com os alimentos. “Não podemos olhar para o conceito de reaproveitamento como algo negativo e apenas para suprir uma ausência. Pelo contrário, devemos pensar como algo novo, saboroso.” Pena que este hábito é algo cultura e ele ainda é visto com pré-conceito na maioria das culturas.
Fast food vegano: o feijão virou hambúrguer! (Foto: a Naturalíssima)
6) Além do prato Sobrou? Reaproveitar é a primeira ordem. Se é possível, dar um destino correto é o próximo passo. A compostagem é um dos mais importantes. Com técnicas de permacultura, cascas e restos de comidas viram adubo e enriquecem o solo para o crescimento de outros alimentos – em Piracanga, que nasceu sobre a areia de uma fazenda de cocos abandonada, tal atitude é essencial para que se possa plantar árvores e plantas alimentícias. Em uma vila no meio do mato, o sistema e permacultura é maior e mais elaborado, inclusive parece mais fácil. Mas nas grandes cidades ele é tão importante quanto, sejam em quintais ou sacadas, e é possível sim – as compostagens adaptadas são um exemplo.
7) Ancestralidade Sabe comida sem complicação? Sabe aquele prato que chamamos de “comida de mãe”? Essa é a comida ancestral, hoje também chamada de comfort food. A simplicidade é um dos pilares da cozinha da ecovila. É a simplicidade de uma sopa, do arroz com feijão, do mix de legumes refogado, da salada temperada com ervas, do doce de compota…
8) Vá de PANCs!
São as ‘plantas alimentícias não convencionais’. Muitas vezes as pancs estão nas ruas e quintais, mas são desprezadas e até confundidas como as ervas daninhas. Nutritivas e muito saborosas, elas podem ser usadas em diversas receitas. Por lá, colhemos algumas para fazer um suco. A falta de conexão com natureza dos atuais tempos nos afastam de identificá-las. A boa noticia é que não faltam cursos e oficinas para a gente resignificá-las!
9) Cozinha sem julgamento Cresci com uma alimentação saudável – com suco verde horta caseira no quintal. Minha jornada em diminuir carne pela minha saúde e pelo planeta e, mais tarde, pelo sofrimento animal, começou há poucos anos e tem ficado forte a cada dia. Ainda não sou vegana. Como ovos – felizes – aqueles criados sem sofrimento – e peixe. Até muito bem recentemente, carne. Mas a jornada para uma alimentação saudável também pode ser cheia de julgamentos. No processo de negar pratos com origem animal, como resistir aquele quitute especial feito com todo amor por alguém da família? Resistir ou não resistir? E aquela vontade de comer uma coisinha ou outra industrializada? Comer sofrendo ou sofrer por não comer.
Thales compartilhou conosco que, embora vegano há alguns anos, não deixa de, vez ou outra, comer o peixe que sua mãe ama cozinha quando ele vai visitá-la. “Meus pais são pescadores e tratam o peixe com todo carinho desde o momento da pesca. É algo cultural, que faz parte da vida deles. Não quero decepcioná-los ou desrespeitá-los. Se tenho algum retiro, realmente opto por não comer e preciso dizer não. Mas vez ou outra eu cedo e não vejo mal nisso. Não estarei comendo um peixe congelado de supermercado. Ele foi pescado com todo amor e respeito pelos meus pais”.
Lição: ao comer, não julgue. Não julgue nem o alimento, nem quem o preparou. Nem você por ter decidido comê-lo.
Comida japonesa vegana! (Foto: a Naturalíssima)
10) Resistência amorosa Depois de poucos dias convivendo com pessoas na mesma sintonia, voltei ainda mais firme das minhas escolhas naturais. O caminho da busca espiritual, do autoconhecimento e do ativismo amoroso pode ser solitário, ainda que você esteja rodeado de pessoas carinhosas. Mas Piracanga sempre estará lá, com aquelas pessoas vibrando alto e fazendo uma energia de amor incrível circular da Bahia para o mundo.
11) Co-criação Acredito no poder do coletivo e foi a primeira vez que vi um lugar organizar-se exclusivamente assim. No caso da cozinha, em todos os detalhes: da equipe, que conta com pessoas da comunidade que trabalham como voluntários; no refeitório, cuja limpeza chama atenção por ser um lugar aberto sobre a areia e em frente ao rio/mar. Ninguém desrespeita as pequenas regras: como entrar descalço, lavar a própria louça, colocar para escorrer….Tudo funciona em harmonia. E foi assim que voltei de lá: harmonizada, conectada e energizada para seguir minha jornada pessoal. E grata a cada ser que que passou por mim naqueles poucos dias.
Muito desses conceitos que relatei acima nós passamos a vida praticando, ainda que indiretamente e intuitivamente. Mas a dificuldade de estar presente- no agora, no caso – e de valorizar as coisas simples nos afastam da natureza e seus significados. Precisamos de pessoas que nos inspirem e apontem caminhos, não é mesmo? Pra mim, o Thales foi um condutor de todas estas lições – convenhamos, incontáveis, que resgatei na Cozinha Alquimia. O projeto “Tudo é possível” é uma viagem colaborativa onde ele vai estudar, dar cursos e visitar ecovilas e fazendas orgânicas para escrever um livro. Se sentir de colaborar, é só clicar aqui beta.benfeitoria.com/tudoepossivel.
A campanha começa dia 25 de março e vai até 25 de abril. Já a viagem vai acontecer em junho/julho e agosto. Ó, que inspiração:
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