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Cristais x sustentabilidade: verdades e reflexões sobre um comércio de bem-estar


Cristais são usados como ferramentas de cura desde tempos imemoriais. Crenças (minhas) à parte, a potência curativa de tudo que vem a natureza é indiscutível. Mas não podemos fechar os olhos para um outro lado da moeda: um contexto que liga boa parte da cadeia produtivas das pedras preciosas à condições humanas miseráveis na África, Brasil, Índia e China, os maiores exportadores do mundo. Este é o tema central do artigo “Cristais e Bem-estar”, da geógrafa e ativista ambiental Lívia Humaire, com trechos reproduzidos abaixo.

Lívia levanta uma questão que sempre coloquei em um lugar de auto-questionamento. Seja para uso terapêutico, seja para preencher a vaidade de ter um cristal em casa (motivações distantes – uma útil, outra fútil, na minha opinião), a transparência sobre a origem ou caminho percorrido até chegar as nossas mãos nunca foi presentes nas relações de vendas e propagandas. Já reparou?

Em contrapartida, os cristais nunca foram tão exibidos redes sociais afora – até por quem jamais meditou ou estudou o reino mineral, mas quer parecer conectado à natureza – e tão usados como apetrechos de bem-estar, beleza e até prazer feminino. Cristal virou matéria-prima para tudo! Eu tenho – muitos, muitos – cristais. Da bolsa à cada vasinho de planta, tenho pedrinha, acessórios, pêndulos e tigelas de cristal, sem contar os destinados a uso terapêutico. Hoje, ainda que com a nobre motivação espiritual, me pergunto “Preciso mesmo de um novo cristal? Aquele acessório da moda mesmo precisa ser de cristal?”. Cristal não é coisa, não é matéria-prima, não é modismo.

Cristais e seu bem-estar

Por Livia  Humaire* — A cadeia dos cristais ou “pedras preciosas” paga centavos lá na ponta para quem está sob seus túneis, localizados esmagadoramente em países da periferia do sistema. Enquanto isso, em 2018 o mercado de pedras preciosas, que teve incremento de 40% das atividades, movimentou mais de 7Bilhões no comércio mundial, ocupando o 402º lugar de produto mais negociado no mundo. Opa! Tem feijão nesse angu… e muito! Liguem as anteninhas.








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dados do Instituto de Tecnologia de Massachusetts — MIT, Observatório de Economia Complexa, acesso 2020.



Extração “Artesanal” em África

Você sabe o caminho que o seu cristal percorreu até chegar a você?


Em setembro de 2019 o The Guardian publicou uma extensa matéria que nada tem de bem-estar quanto a sua tradicional cadeia de produção, aos moldes capitalistas de extração, com mão de obra barata e em péssimas condições humanas e ambientais.

O lócus em que se concentra a matéria do jornal britânico em África é considerado um dos mais pobres do mundo, que ao lado da Índia, Brasil e China, é responsável pela maioria da produção e exportação global dos cristais, feita de forma “artesanal” como preferem dizer algumas marcas, ou seja, movido a suor humano, ou mais especificamente, infantil.

E em um país onde a infraestrutura, o capital e a regulamentação do trabalho são escassos, são os corpos humanos, e não as máquinas, que puxam os cristais da terra. (The Guardian, 2019)


A maioria das casas em Anjoma Ramartina não tem eletricidade, água corrente, telefone ou conexões de rede. A desnutrição é comum. Segundo o Banco Mundial, cerca de 80% das pessoas fora das cidades de Madagascar vivem abaixo da linha de pobreza de US $ 1,90 por dia (The Guardian, 2019)

Enquanto algumas grandes empresas de mineração operam em Madagascar, mais de 80% dos cristais são extraídos “artesanalmente” — o que significa que pequenos grupos e famílias, sem regulamentação, recebem preços muito baixos.(The Guardian, 2019)







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Tavita (esquerda) e Roland, 17 anos, caçando turmalina a cerca de 15 a 20 metros abaixo do solo. Foto: Tess McClure



De acordo com do dados do departamento de trabalho dos EUA, 85mil crianças trabalham nos túneis de caça às pedras em Madagascar (The Guardian, 2019) para o bem-estar ocidentalizado poder banhar suas pedras ao sol, enquanto estas estão sob a terra, com dificuldades de respirar. Além das questões sociais que envolvem essa atividade de mineração, as questões ambientais são sérias e agudas, conformando o binômio bem conhecido por nós — vulnerabilidade social e destruição ambiental (tenso!) – aliás, regiões de garimpo e exploração minerária se conformam desta maneira.

Os espécimes de Madagascar exportam alguns cristais em bruto, mas sua oficina em Antananarivo também trabalha as pedras, cortando-as em formas, retificando e polindo as faces. Da perspectiva de Liva Marc, refinar a pedra em Madagascar significa criar empregos estáveis ​​e manter mais do valor dos cristais no país. Com pedras exportadas em bruto e depois esculpidas na China ou nos EUA, quase nenhum lucro ficou em Madagascar. (Liva Marc Rahdriaharisoa para o The Guardian, 2019)

A floresta de Madagascar está seriamente desaparecendo à medida que a atividade minerária se expande na região, em busca de mais e mais pedras que vão para o ocidente. Outras atividades também estão ligadas à devastação ambiental da ilha.





Celestitas de Madagascar




Em 2018, os países que tiveram maior valor comercial em importações do que as exportações de Pedras Preciosas foram Estados Unidos (US $ 731 milhões), França (US $ 449 milhões), Índia (US $ 265 milhões), Hong Kong (US $ 241 milhões) e Itália (US $ 203 milhões). *Dados do observatório de economia complexa do Massachusetts Institute of Technology

Muitos clientes estão procurando, porque a medicina com cristais é muito popular agora. Como a terapia, os cristais de crença têm poder de cura, sabe? É muito — como você diz? — na moda.” (Liva Marc Rahdriaharisoa para o The Guardian, 2019) “Talvez eles [lojas nos EUA] não expliquem isso para seus clientes. É negócio para eles, eles querem dinheiro. Eles nunca dirão: ‘Eu compro isso por US $ 1 e vendo por US$ 1.000’ ”, ele riu,“ mas essa é a realidade ”.(The Guardian, 2019)

Na reportagem do jornal, uma marca bastante famosa de garrafas com Cristal, que possui em seu slogan o comércio justo e sustentável, revela que não tem como controlar a origem e condições de trabalho de onde seus insumos são comprados.

No Brasil temos histórias muito parecidas

Rolo de massagem de quartzo rosa: ícone do skincare 2020 (Imagem: herbivorebotanicals)


O mesmo rastro de pobreza, más condições de vida humana, são encontrados em garimpos de cristais espalhados pelo Brasil. Também invasões de terras indígenas, mortes, garimpos ilegais que parecem legais (veja um dos vídeos da referência!), trabalhos análogos a escravidão e infantil, destruição e degradação de florestas e áreas protegidas, são resultados que fazem parte desta atividade no país. Montanhas abaixo que não existirão nunca mais!!

Conforme percorremos a cadeia produtiva, o valor das pedras vai se multiplicando a cada elo completado, chega a dezenas de vezes o valor inicial. O destino final são as pessoas interessadas terapias alternativas, yoga, alimentação natural, espiritualidade da nova era, entre outros (The Guardian, 2019). Todo mercado tem seu público, bem circunscrito e definido.

O que choca não é a espiritualidade associada a estes minerais, e sim, a falta de questionamento das pessoas que dizem trabalhar com expansão de consciência em relação a esta questão específica da origem do material. Claro que isso é um dado nada “obrigatório”, que todos os consumidores devam saber.

Contudo, os negócios tem um pouco mais de obrigação em checar informações e alinhar os produtos a seus princípios. Afinal, ao buscar um negócio sustentável, a confiança das pessoas que validam a marca reside justamente nessa curadoria e cuidados já elaborados, por algo que a própria marca diz oferecer em seu discurso sustentável.

Negócios que estão ligados às questões essenciais de sustentabilidade e estilo de vida sustentável, comercializarem materiais tão insustentáveis e com processos tão violentos como este, estão cometendo um grave erro de análise e alinhamento, e precisam rever ou seus critérios, ou seus discursos.

GARIMPO E SONHO, uma relação histórica

A atividade de Garimpo é algo que lida diretamente com os sonhos de famílias e pessoas que acreditam que encontrar uma pedra preciosa pode mudar ou arrumar sua vida para sempre. Isso desde que o mundo é mundo. As histórias em Minas Gerais que nos contem!!!!! Algumas histórias revelam que isso acontecia muito. Porém, é uma roleta russa, um “jogo” como muitos garimpeiros falam. Vide a história de Serra Pelada, uma das mais violentas e maiores minas de ouro a céu aberto no mundo.









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Os custos da destruição social e ambiental em todos os lugares e populações que lidam com esta atividade são incalculáveis. Montanhas e Florestas que somem, vidas soterradas e crianças trabalhado feito sei lá o quê. Cenário este, que não me parece valer uma energização de água ou uma possível diminuição das rugas na região dos olhos!

Hoje, ética e transparência na cadeia produtiva podem nos ajudar a saber o que estamos financiando direta e indiretamente. Saber dos processos aplica a dimensão política às nossas escolhas.

Também, nos ajuda a criar coerência nos negócios que tem em seu DNA a tão esfoliada bandeira da sustentabilidade. Esses espaços tem grande responsabilidade em saber e informar suas procedências! É exatamente essas duas dimensões -transparência e ética, que as cadeias produtivas do sistema que eles dizem querer mudar, escondem em suas entranhas; ]

Requeremos neste momento de muitas informações para entender as complexas relações que estão por detrás dos produtos, alimentos, e serviços que consumimos e assim financiamos. Fato, nos debruçar sobre isso é revolucionário.

* Texto original publicado aqui por Lívia Humaire.

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